Somos uma cómoda.
Sentimos até sentir. Ficamos naquela impressão silenciosa que corrói e deixa um leve ímpeto de agarrar. Agarrar seria agir. Sentimos tanto que a atitude se revela incompreensível, incoerente, plena de movimentos sem concordância, estratégia ou direcção. Sentimos até sentir porque desistimos. Porque somos uma cómoda.
Vivemos de acordo com os sonhos, os objectivos, aquele caminho traçado ou uma perspectiva que foi incutida no decorrer das nossas vidas. Sentimos a pressão. Caímos na ilusão de que está tudo bem e de que nada sairá deste controlo invisível que nos prende ao chão.
Somos feitos de caleidoscópios. Tudo muda embora tudo esteja ali. As combinações são às centenas com as cores, as formas e o deslumbre associado. Escolhemos sempre a mesma. Somos uma cómoda que envelheceu e se deixa destruir pelas térmitas que comem a madeira lentamente. Quase como em protesto pela vida amorfa que levamos. Somos devorados pelas pequenas escolhas que fazemos no decorrer das vinte e quatro horas miseráveis a que nos propomos respirar. Somos feitos de segundos perdidos, olhares que poderiam ser roubados, beijos que poderiam ser apaixonados e sorrisos que disfarçamos. Sentimos até querer. Mordemos o lábio sem sensualidade e deixamos passar o momento. Agir seria agarrar. Agarrar mete medo porque perdemos a segurança e o conforto. Somos uma cómoda velha.
Tinha muitas ideias. Defendia-as até à morte como se fossem coisas estanques entranhadas no seu ser que pertenciam à sua anatomia e não apenas aos pensamentos. Os pensamentos não mostram o seu estado físico. Vêm embrulhados em papel majestoso dourado, mas não se revelam em nada. No entanto são tudo aquilo que compõe o ser humano. Tudo.
De olhos castanhos fortes e cheios de saber, escondia-se no mistério que deixava no ar por onde quer que passasse. Lábios volumosos que davam a cada palavra uma articulação especial e elevavam o seu interesse mesmo que fossem vulgares citações desprovidas de grande significado. Absorvia factos e detalhes de forma compulsiva e exagerada. Aborrecia e exaltava. Eram duas sensações contraditórias que espalhava em seu redor.
Numa intensidade maior, mais fugaz e vagabunda, um sorriso encheu a sala. A noite já no seu auge não deixava ver a pele clara ou a imperfeição quase perfeita dos seus olhos pequenos com leves rugas. De personalidade transparente, demasiado transparente por vezes, avançava com conversas utópicas sobre o futuro que se perde ao definir o futuro. Sentir demais pode levar a não sentir. Assemelhar-se a uma pedra pode ser confundido com sentimentos tantos e tão variados, que deixam de causar entropia para se transformarem num sólido compacto e sem direcção. A menos que o arremessem e vejam onde vai parar. Se pára outra vez, poderá não mexer-se mais?
Olhava em redor em busca de qualquer coisa que não sabia o quê. Era uma luz intermitente que ora estava baixa e pálida, ora ateava toda a rua. Não sabia quem era ou o que queria. Era assim, uma pequena luminosidade, cheia de contradições, medos, incertezas e verdades inacabadas. Reproduzia mentiras ou sonhos. Sonhava ou perdia-se em pensamentos. Era uma alma cheia ou vazia dependendo da hora. Dependendo de quem, como e onde.
Olhar vazio, cheio, claro e pensativo. Olhar que não mente e que vive no sonho apaixonado da vida. Olhar que vive na esperança de os bons se juntarem aos bons e os maus não existirem. Olhar que sente muito mas mais comedido…de um modo mais sereno e menos irrefletido.
Às vezes perco a lucidez e penso que se o tempo não trocasse o mundo, se a hora fosse outra, o momento outro e as regras não existissem…tudo seria diferente. Às vezes tenho pena porque fecho os olhos e faço histórias e não há paralelismo com a realidade. Às vezes sinto que se agarrar a linha de pensamento, se fechar os olhos com força e começar o sonho onde ele parou, que tudo muda. Não se vertem lágrimas por momentos pensados e repensados…por atitudes irracionais e egoístas. Amanhã não é o mesmo amanhã se hoje não for um hoje vivido. O hoje vivido é feito de escolhas. Daquelas escolhas que se perdem em desejos ocultados, reprimidos e esquecidos no tempo. Somos sós e perdidos. As decisões são nossas e não primam por respeito próprio. Primam por quê?
A combinação estava acertada. Sempre com renitências da parte dele, renitências não recíprocas.
Tinha a certeza que a vida parava quando a energia se esgotava, o mundo balançava de cabeça para baixo e pernoitava oca em si. Ser perdida e desprendida seria um problema? Nado no medo, no desconforto e no comodismo. Sou uma cómoda.
Anabela
Muito muito bom!